A produção de um espetáculo, aqui me atenho
especificamente aos de dança, pode ser inspirada de muitas formas, no
cotidiano, em uma pintura, um filme, uma música, uma palavra, uma personalidade...
e até no imenso mundo da literatura. A escolha pela inspiração literária merece
cuidados específicos, naturalmente, se há algum compromisso com a Arte. E cabe
à plateia a atenção sobre a forma como este trabalho é feito, afinal, é ela que
molda parte da evolução desta Arte.
Inicialmente, lembremos que, em se tratando de
Brasil, o público em geral é formado por leitores superficiais. Os títulos de
maior vendagem, quase como regra, são medíocres do ponto de vista literário. Já
o público que assiste espetáculos de dança, busca um diferencial cultural e,
naturalmente, tem seu papel como crítico desta Arte, para tanto, leitura de
qualidade é indispensável. E ler, entendo eu, vai muito além do conteúdo da
obra, inclui o regozijo pela forma, pelo desenho da combinação de palavras e
sentidos, pela profundidade, pela coerência de um enredo, pelo que está e pelo
que se pode imaginar em entrelinhas, pela inteligência da composição, pela
harmonia musical das frases, pela compreensão do autor e de seu momento
histórico, pela excitação que o mergulho na abstração causa, pelo transporte a
outros lugares e tempos, pela mudança que nos provoca... Literatura rasa, não
tem este amplo poder, é exploradora barata do conforto intelectualóide e, frequentemente,
parte de trajetórias autorais mercenárias, sem qualquer compromisso artístico.
Esta plateia, é potencialmente capaz de fugir
da inópia na interpretação de textos porque não pode ser parte da massa que nem
mesmo compreende as palavras em suas polissemias, quanto mais metáforas ou significados
de frases com alguma elaboração. Uma iniciativa de escrita com conteúdos mais
profundos, que exigem do leitor uma compreensão cognitiva sofisticada, mais
trabalhosa, apreciação artística da modelagem textual, não terá hordas de
seguidores. Autores deste tipo de texto, em geral, não esperam quantidades de
leitores em curto espaço de tempo. Mas é este tipo de obra desafiadora do tempo
que seduz um diretor de espetáculos de dança cujas inspirações são ávidas pelo
que alarga o intelecto. Portanto, de alguma forma, este tipo de obra merece
atenção da plateia também.
Boas ancoragens literárias de espetáculos de
dança, acontecem a partir do conhecimento em seu sentido mais amplo. Um bom
diretor mergulha no autor escolhido e esmiúça sua trajetória, seu objetivo de
vida, seu papel político-social. A boa plateia também. Um bom diretor não se contenta
com a leitura de um trecho isolado, ou traduzido com erros, não se satisfaz ao fazer
as próprias elucubrações e interpretações alienadas do contexto. A boa plateia
também não. O bom diretor transita de verdade nas vielas do que o inspira, com
conhecimento e imaginação, a conduta pessoal de um autor que escolhe a pobreza
bem maquiada para surfar na onda monetária em detrimento da qualidade literária,
não o convence. À plateia também não deve convencer. Nesta seara, são insuficientes
os autores de autoajuda superficial, que em nada se importam com a delação de
sua elementaridade e mediocridade, isto quando não protagonizam tumultos
mundiais de plágio tácito.
Felizmente no âmbito profissional contemporâneo
brasileiro foram produzidos espetáculos de dança inspirados pela literatura a
partir da escolha de autores inquestionáveis, fazendo a diferença para solidez
de seu reconhecimento qualitativo amplo, do qual a plateia participa ativamente.
Deborah Colker é exemplo, depois de explorar o
cotidiano, a arquitetura, as Artes Plásticas, os esportes, chega à maturidade
para criar espetáculos inspirados em autores e suas obras literárias de peso
irredutível no cenário mundial. Ao longo de décadas construiu esta maturidade,
que não está obrigatoriamente relacionada à qualidade técnica da dança, e
encontra-se preparada para a responsabilidade cultural e intelectual imposta
por seu enfrentamento. Para ancorar o espetáculo “Tatyana” estreado em 2011, Deborah escolhe o romance poético, recheado de
sonetos, “Eugene Onegin”, um clássico da literatura universal publicado em
diferentes edições de jornais entre 1823 e 1831, da autoria de Aleksandr
Pushkin, conhecido como pai da literatura russa.
Fonte: Eugene Onegin |
Este romance inspirou ninguém
menos que Tchaikovsky a compor, entre 1877 e 1878, suas “cenas líricas” de
mesmo título, conhecidas hoje como sua ópera mais famosa. Sugestivamente, a obra
estreada em 1878 inclui valsas que estavam no auge dos salões de dança da época.
Onegin de Pushkin não inspirou apenas Tchaikovsky e as numerosas interpretações
de sua ópera, esta obra não passou desapercebida pelo cinema, que em 1999
estrelou o filme trazido ao Brasil sob o título “Paixão proibida”,
protagonizado por Ralph Fiennes e dirigido por
sua irmã Martha Fiennes.
Fonte: “Eugene Onegin” - Photo: Metropolitan Opera |
E o mais novo espetáculo de Deborah Colker, “Belle”, de 2014, é ancorado
no romance “Belle de Jour”, do escritor argentino Joseph Kessel. A obra,
trazida para o cinema no longa-metragem que traz o mesmo nome, em 1967, é protagonizada
por Catherine Deneuve e permanece desbravadora até os dias de hoje, um clássico
do cinema contemporâneo.
E a autoria de literatura brasileira não ficou
apartada dos palcos de dança. A Companhia de Dança GEDA de Porto Alegre, por
exemplo, apresentou em 2014 o espetáculo “Não me toque estou cheia de lágrimas
– Sensações de Clarice Lispector”, que ganhou o concurso cultural promovido
pelo Ministério da Cultura, intitulado Copa 2014.
Todos, espetáculos com registros evidentes das
fundamentações de estudo profundo da literatura de força indelével que o
ancora, abrangendo não só uma obra, mas, o significado social, político e
temporal de seu autor. É isto que se deseja para espetáculos de Dança de Salão
de Projeção, ou Contemporânea, ancorados em literatura.
Por fim, nossa responsabilidade como plateia
não é passiva, não é simplesmente pagar o ingresso e aplaudir, é manter o olhar
vivo e seletivo, que estimula produtores à busca pela qualidade. Deleitar-se valorizando
o encanto de sons, luzes, cores e movimentos bem feitos e de bom gosto sim,
mas, quando em tese há uma obra literária como inspiração, precisamos fazer
nossa parte, mantendo a atenção para não nos desgarrarmos da tarefa imprescindível
de avaliar e conduzir ao aprimoramento. Vale, sempre, primar pelo conhecimento consistente, alimentar o senso crítico e, se há recurso público envolvido a exigência de
critério por parte da plateia chega a ser uma questão de cidadania.
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