22 de setembro de 2014

Autorizada a dizer não

"Não".

Na vida e, especialmente em um salão, é uma resposta associada à falta de polidez. Entretanto, em determinados casos, o "não" é justo, em outros, necessário. Há um mito de que uma dama nunca pode dizer "não" quando convidada a dançar. Hoje, muitos autores já concordam com as exceções. Algumas situações são compatíveis com negativas mais obviamente, por exemplo, quando os convites vêm de cavalheiros embriagados, insuficientemente asseados, inadequadamente preparados para o local, praticantes de assédio sexual ou situações semelhantes em que se nota um desrespeito grosseiro anterior ao convite.

Mas o "Não" é necessário também em outras circunstâncias menos objetivas. Meu entendimento é que a observação do comportamento das pessoas, da forma como se movem e agem, na vida ou no salão, é indispensável para que saibamos nos posicionar de forma proporcional e civilizada, onde quer que estejamos.

O salão é uma passarela de indivíduos, cada um, habitado por seus anjos, e também por seus diabos. Como já disse meu pai em um de seus livros, somos todos "Diabanjos". Como na sociedade, na pista existem regras. Ali, o fluxo habitual de circulação é anti-horário. A linguagem vigente não é falada. A conversa, é cinesiológica e não verbal. É local para dançar e não para cantar, considerando inclusive o teor polissêmico da palavra. A concentração essencial está no par e não em quem pode assistir, existe palco para quem quer se satisfazer com a aprovação do expectador.

As coisas mais impressionantes, marcantes e belas de um salão, não são visíveis. São perceptíveis por outros sentidos que precisam das condições apropriadas para seu pleno funcionamento. É um dos melhores locais para perceber a humanidade e aprender sobre ela. No salão vemos, lado a lado, ignorância e sabedoria, petulância, arrogância e humildade, sensibilidade e sua ausência, respeito e desrespeito ao outro e ao ambiente, inteligência e estupidez, beleza e fealdade, honestidade e desonestidade, carência e independência, empatia e egocentrismo, altruísmo e egoísmo, fúria e calmaria, sexo e sensualidade, dramas íntimos mal resolvidos e serenidade, cooperação e individualismo descompensado... Ali está o humano, nú.

Fazendo um recorte deste universo infinito, é neste ambiente que começa a verificação de uma dama, sobre o seu direito, dentro de uma esfera cuja regra é a cordialidade, de dizer "não". É uma tarefa que começa com a observação, atenção ao que ocorre na pista e em seu entorno, percepção de detalhes, olhares, expressões, gestos, movimentos e seus conteúdos. Quando um cavalheiro, por exemplo, mostra como hábito dançar no meio de um salão no qual existe a regra do fluxo anti-horário, além de expor sua dama a uma situação provavelmente indesejada por ela, autoriza todas as demais a lhe negarem as próximas danças. Se a dama não pediu expressamente, o cavalheiro que fala com ela em pleno salão tentando dizer-lhe como quer que se porte ou se movimente, também autoriza todas as demais damas a lhe negarem as próximas danças. Especialmente quando faz questão de que terceiros percebam sua conduta. E é comum que cavalheiros assim sejam desprovidos da capacidade de entender as negativas que recebem, julgando equivocadamente que as damas proferidoras do "Não" para uma dança são despolidas. Mas na realidade o que ocorre é o contrário. Salão, seja de prática ou de dança, não é terra sem lei, nem palco, nem sala de aula, nem consultório. Uma dama mais caridosa e que tem algum amor próprio dirá "Sim" duas, três ou até mais vezes, dando a chance ao cavalheiro para que respeite o salão, mas, se isto não ocorrer, chegará o momento em que dirá "Não" a ele de forma irrevogável.

Cavalheiro de fato não convida para uma dança, em qualquer circunstância, uma dama que não observou com cuidado previamente. Uma vez que fez sua observação, entendeu como a dama se move, como dança, ao convidá-la está aceitando respeitar suas características, logo, não tem porque dizer para ela como quer que se porte ou responda ao que ele acredita ser condução. Fazer isto é falta de respeito com a dama e com o salão, e é ignorância associada à arrogância quando a vivência da profundidade da dança de salão é limitada por parte do cavalheiro.

Outra questão a notar é a opção feita pela dama quanto à linha técnica. Uma dama que escolheu seguir uma linha tradicional, procurou escolas que valorizam a história e o aprimoramento técnico específico, dificilmente terá prazer verdadeiro em dançar com cavalheiros que fizeram sua trajetória com linhas cuja fidelidade histórica não é um valor, com ensinadores mais eficientes em divulgar aulas de dezenas de danças do que em conhecer profundamente uma delas que seja. São escolhas, ambas válidas. Cabe ao cavalheiro, primeiramente, identificar damas que optaram por caminhos compatíveis com o seu para, então, fazer seu convite visando que os objetivos da dança sejam alcançados.

Muitos homens que estão no salão, com um pouco de sorte, são dançarinos. Mas cavalheiro que é cavalheiro de fato, entende o local em que está, respeita suas regras, estuda cada dama antes de convidá-la para um passeio na pista e assume para si a missão primordial satisfazê-la a cada dança.

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