27 de setembro de 2014

EXTRA: Arrastão na pista

Incrível. O tempo passa, as coisas mudam, evoluem, mas certos maneirismos desvirtuados parecem congelados no tempo. Chegam a ser engraçados se não fossem essencialmente falta de oportunidade para compreender o que é civilização.

Vejo que alguns casais, inclusive de profissionais da área da dança, ainda confundem autódromo de corrida automobilística com pista de dança. Segue-se um fluxo natural, harmônico, historicamente típico de um salão de danças que flui no anti-horário. Queria poder ver este salão de cima. E surge um casal que parece contar avidamente a quantidade de voltas que consegue dar no que a sua imaginação, ou alucinação, revela como "adversário". Quando pensamos que a turbulência passou, lá vem novamente atrás manobrando para "ultrapassar". Pior, não percebem, mas a forma que dançam, por mais dominada e com alguma articulação ou estética própria sem fundamento, equipara-se a um caminhão guiado por um embriagado em meio a carros de passeio nos quais casais desfrutam de uma noite de luar. Como diz uma colega minha, "treva". Brutamontes entorpecidos que abrem clareiras com cotoveladas e saltadas. O mais incrível é a pose de superioridade, de quem "pode" mais.

Acho que já é tempo de aprender e ensinar, nas escolas de dança, sobre a importância de reconhecer o local em que se está, suas características e regras, para respeitá-las. Este é o primeiro passo para começar a entender o que realmente importa em uma pista de dança. Tem lugar para apostar corrida, tem lugar para gladiar, tem lugar para se exibir e tem lugar para tratar distúrbios. O salão de danças, em geral, não é ambiente para isto.

22 de setembro de 2014

Autorizada a dizer não

"Não".

Na vida e, especialmente em um salão, é uma resposta associada à falta de polidez. Entretanto, em determinados casos, o "não" é justo, em outros, necessário. Há um mito de que uma dama nunca pode dizer "não" quando convidada a dançar. Hoje, muitos autores já concordam com as exceções. Algumas situações são compatíveis com negativas mais obviamente, por exemplo, quando os convites vêm de cavalheiros embriagados, insuficientemente asseados, inadequadamente preparados para o local, praticantes de assédio sexual ou situações semelhantes em que se nota um desrespeito grosseiro anterior ao convite.

Mas o "Não" é necessário também em outras circunstâncias menos objetivas. Meu entendimento é que a observação do comportamento das pessoas, da forma como se movem e agem, na vida ou no salão, é indispensável para que saibamos nos posicionar de forma proporcional e civilizada, onde quer que estejamos.

O salão é uma passarela de indivíduos, cada um, habitado por seus anjos, e também por seus diabos. Como já disse meu pai em um de seus livros, somos todos "Diabanjos". Como na sociedade, na pista existem regras. Ali, o fluxo habitual de circulação é anti-horário. A linguagem vigente não é falada. A conversa, é cinesiológica e não verbal. É local para dançar e não para cantar, considerando inclusive o teor polissêmico da palavra. A concentração essencial está no par e não em quem pode assistir, existe palco para quem quer se satisfazer com a aprovação do expectador.

As coisas mais impressionantes, marcantes e belas de um salão, não são visíveis. São perceptíveis por outros sentidos que precisam das condições apropriadas para seu pleno funcionamento. É um dos melhores locais para perceber a humanidade e aprender sobre ela. No salão vemos, lado a lado, ignorância e sabedoria, petulância, arrogância e humildade, sensibilidade e sua ausência, respeito e desrespeito ao outro e ao ambiente, inteligência e estupidez, beleza e fealdade, honestidade e desonestidade, carência e independência, empatia e egocentrismo, altruísmo e egoísmo, fúria e calmaria, sexo e sensualidade, dramas íntimos mal resolvidos e serenidade, cooperação e individualismo descompensado... Ali está o humano, nú.

Fazendo um recorte deste universo infinito, é neste ambiente que começa a verificação de uma dama, sobre o seu direito, dentro de uma esfera cuja regra é a cordialidade, de dizer "não". É uma tarefa que começa com a observação, atenção ao que ocorre na pista e em seu entorno, percepção de detalhes, olhares, expressões, gestos, movimentos e seus conteúdos. Quando um cavalheiro, por exemplo, mostra como hábito dançar no meio de um salão no qual existe a regra do fluxo anti-horário, além de expor sua dama a uma situação provavelmente indesejada por ela, autoriza todas as demais a lhe negarem as próximas danças. Se a dama não pediu expressamente, o cavalheiro que fala com ela em pleno salão tentando dizer-lhe como quer que se porte ou se movimente, também autoriza todas as demais damas a lhe negarem as próximas danças. Especialmente quando faz questão de que terceiros percebam sua conduta. E é comum que cavalheiros assim sejam desprovidos da capacidade de entender as negativas que recebem, julgando equivocadamente que as damas proferidoras do "Não" para uma dança são despolidas. Mas na realidade o que ocorre é o contrário. Salão, seja de prática ou de dança, não é terra sem lei, nem palco, nem sala de aula, nem consultório. Uma dama mais caridosa e que tem algum amor próprio dirá "Sim" duas, três ou até mais vezes, dando a chance ao cavalheiro para que respeite o salão, mas, se isto não ocorrer, chegará o momento em que dirá "Não" a ele de forma irrevogável.

Cavalheiro de fato não convida para uma dança, em qualquer circunstância, uma dama que não observou com cuidado previamente. Uma vez que fez sua observação, entendeu como a dama se move, como dança, ao convidá-la está aceitando respeitar suas características, logo, não tem porque dizer para ela como quer que se porte ou responda ao que ele acredita ser condução. Fazer isto é falta de respeito com a dama e com o salão, e é ignorância associada à arrogância quando a vivência da profundidade da dança de salão é limitada por parte do cavalheiro.

Outra questão a notar é a opção feita pela dama quanto à linha técnica. Uma dama que escolheu seguir uma linha tradicional, procurou escolas que valorizam a história e o aprimoramento técnico específico, dificilmente terá prazer verdadeiro em dançar com cavalheiros que fizeram sua trajetória com linhas cuja fidelidade histórica não é um valor, com ensinadores mais eficientes em divulgar aulas de dezenas de danças do que em conhecer profundamente uma delas que seja. São escolhas, ambas válidas. Cabe ao cavalheiro, primeiramente, identificar damas que optaram por caminhos compatíveis com o seu para, então, fazer seu convite visando que os objetivos da dança sejam alcançados.

Muitos homens que estão no salão, com um pouco de sorte, são dançarinos. Mas cavalheiro que é cavalheiro de fato, entende o local em que está, respeita suas regras, estuda cada dama antes de convidá-la para um passeio na pista e assume para si a missão primordial satisfazê-la a cada dança.

13 de setembro de 2014

Amostra de universo

Gosto de divagar pensando que meu corpo é uma amostra ínfima, mas representativa, do universo.

É desmistificadora a ilusão, mesmo que tola, de conter fisicamente, de alguma forma, regras, ausências, presenças, transparências, opacidades, velocidades, estáticas, relatividades, partículas, luzes, escuridões, ondas, ordens, desordens, paralelismos, buracos, vácuos, grandezas, pequenezas, inícios, pausas, reinícios, continuidades e... fins.

A sensação de ampliar a verdadeira consciência corporal e do movimento me entrega a percepção de ser parte fugaz e indistinta do funcionamento universal.

Mover-me na harmônica conexão da parceria inspirada pela música, sonora ou silenciosa, desnudando a unicidade entre o que há dentro e fora, parece um dos mais deliciosos, belos e leves caminhos para desintegração individual, nexo de certa assimilação lúcida e sensorial do tudo.

Dançar pode ser uma forma de permitir que nossos corpos sintam respostas para as quais nossos cérebros são pequenos. Talvez mais, talvez dançar seja um jeito de ser devolvido ao universo sem morrer.

7 de setembro de 2014

Quer saber? Dance

Quer saber porque o mundo é como é? Vá a um salão, sente-se e analise criteriosa e demoradamente a forma como cada um se movimenta. O salão é um espelho da vida humana.

Quer participar intimamente das belezas e feiuras de alguém? Dedique-se para ser seu melhor parceiro na pista.

Quer sentir suas próprias belezas? Autorize a música a inspirar seu corpo.

Quer enxergar e admitir suas próprias fragilidades, conhecer e enfrentar suas mais variadas feiuras? Encare um verdadeiro salão de danças dançando com outras pessoas.

Mas se você não precisa entender o mundo real e menos ainda as próprias profundezas, dentre outras prevenções, jamais entregue-se à Dança de Salão.

4 de setembro de 2014

Dança de salão e comportamento preventivo

Os últimos meses foram marcantes para a Dança de Salão.

Uma denúncia pública de uma dama contra seu cavalheiro, que a teria incapacitado fisicamente para dançar, quebrou um verdadeiro Jarro de Pandora. Abriu-se um armário cheio de esqueletos de palcos, salões e até salas de aula.

O resultado foi uma onda de relatos de casos, artigos, textos e discussões sobre o perigo imposto por uma prática permeada pelos comportamentos de risco que derramou-se por periódicos e redes sociais. Danos físicos como resultado da adoção de comportamentos de risco não são novidades, há poucas semanas apresentei a questão no artigo: "Breve histórico de comportamentos de risco na Dança de Salão" (Revista Dança em Pauta, Coluna Dança e Comportamento)

A Dança de Salão começou a acordar, pensar e articular formas de prevenção para proteger seus praticantes de si mesmos.

Em meio a esta avalanche de revelações e da premente necessidade de mudar, nasce uma iniciativa que mostra caminhos para uma revolução.



Ontem iniciou no Todo Tango Studio um projeto único, que pode ser considerado uma referência em meio a uma escuridão de mais de um século na Dança de Salão. Vania Andreassi, estudiosa e professora dedicada ao universo do Tango, formada em Educação Física pela UFPR, em Dança pela UTP e tendo cursado ainda Fisioterapia na UTP, apresentou sua primeira aula de um método pioneiro, especialmente voltado às dificuldades apresentadas por seus alunos. Trata-se de uma atividade física que visa preparar o corpo trabalhando flexibilidade, equilíbrio, coordenação motora, fortalecendo grupos musculares importantes para a prática da Dança de Salão, especialmente para o Tango. Mais um dos aspectos valiosos é o trabalho de consciência do movimento que é oferecido ao aluno que busca uma prática saudável para toda a vida. Um método novo, que talvez mereça ser chamado "Método Andreassi" de preparação física com concentração em Tango.

Embora o objetivo principal seja subsidiar o organismo para uma prática duradoura e saudável do Tango, mais especificamente, pelo que pude constatar nesta aula, trata-se de um trabalho de atenção ao corpo em suas possibilidades e trabalho de potencialidades. É ainda, uma alternativa de atividade física para quem não tem afinidade com outras práticas comuns em academias.

Sem dúvida é uma iniciativa capaz de provocar uma reviravolta no âmbito do ensino da Dança de Salão. Não deixo de pensar que no futuro será uma base indispensável para danças praticadas em salões, palcos e salas de aula. Mais uma vez, abre-se a discussão sobre a formação do professor e sua responsabilidade com os corpos e mentes que estão sob sua orientação.

Parabéns Vania Andreassi, uma iniciativa revolucionária que, cedo ou tarde, será copiada pelos profissionais quem tiverem boa formação, competência e sabedoria.